terça-feira, 5 de outubro de 2010

SOU-TE


(1)
Sou-te!
Sou a tua imagem e semelhança.
Sou tu, tu sou eu, somos uno.
És eu!
Me vês em cada canto em que possas te refletir, me refletir.
Nos espelhos, nos lagos, nos vidros que refletem.
Conheço-te, conhece-me desde a mais tenra infância.
Onde tu com olhinhos espichados procuravas os meus.
Tu me adoras, te adoras, te adoro.
Sou-te inteira, sou-te rosto, sou-te olhos.
Mesmo quebrada tu me vês inteira.
Fragmentos de ti em mim.
Sou-te a pele branca de areia deserta, teu corpo magro, teus seios pequenos.
Sou toda encanto.
Tu és um encanto.
Sou-te olhos tristes.
Sou teu refúgio, me procuras e me encontras.
Não consegues esconder de mim teus segredos, teus sonhos, teus emaranhados de pensamentos, pois tu me olhas, olho-te e me vejo em ti sem seres tu.
Apenas imagem.
Vi-te, e vi-me através dos anos transformar-te, transformastes a mim.
Vi-me, vi-te alegre ou triste.
Cantaste-me canções, dançaste em mim.
Ensaiaste beijos e bocas, e ensinei a ti teu melhor ângulo.
Cresceste, cresci, muita coisa mudou.
Fizeste-me promessas e muitas não cumpriu.
Mas não te julgo, não me julgas.
Adultou-se, adulterou-se, humanizou-se.
Humanizou-se no sentido vil da palavra.
Tornou-se igual.
Perdeste a pureza que havia em mim, em ti.
Mas ainda és tu, sou eu...
Não perdeste o encanto.

(2)
Sou-te!
Serei-te sempre enquanto houver reflexos.
Queria poder abraçar-te
A ti que sou eu.
Fazer o que tu fazes, seres tu.
Mas conformo-me em ser-te sombra
Em ouvir tuas histórias.
Encanto-me com tua gargalhada, com teu pranto.
Os anos se passam e envelhecemos.
Vejo-te engolir em seco
Olhando as rugas que surgem.
Me tocas, te tocas, não acreditas.

(3)
Há dias não te vejo, não me vês.
Procuro-te a mim nos lagos, nos vidros de carro, no espelho de tua bolsa.
Não te encontro.
Miraculosamente consigo sair de meu canto e te encontro
Enquanto lavas o rosto em um pequeno lavatório de ágata.
Não me fitas.
Por toda a casa não existem mais objetos que refletem imagens.
Por isso não te encontravas, não me encontravas.
Aproximo-te de ti devagar.
Teus olhos agora fechados.
Sentes minha presença e me olhas, te olhas.
Choras ao se ver, ao me ver.
Abraço-te, abraça-me.
Abraço-me a ti e tu a mim.
De repente não me sou mais.
Deixaste de ser, deixei de ser.
Não somos mais.
Os espelhos perderam tua imagem.
Tu me perdeste.
Te perdi .
Não mais haverá outra igual a ti, a mim.

Natasha Romanova

terça-feira, 13 de abril de 2010

O jogo da amarelinha


Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.
Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais perto e nossos olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água.
Julio Cortázar.

Enjoy the silence

E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, nos dizer um pouco um para o outro, senta ao meu lado assim mesmo. Deixa os nossos olhos se encontrarem vez ou outra até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a vida da gente se sente olhada com amor. Senta apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o seu. Às vezes, a gente nem precisa mesmo de palavras.

Ana Jácomo