sexta-feira, 16 de outubro de 2009

LUA DOURADA

"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, é então que me interrogo sobre quem tu és, Nossa Senhora do Silêncio... Figura que atravessa todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, de interiores antigos, de cerimoniais faustosos de silêncio. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e de desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu. Talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil nunca é o mesmo mas nada muda. Eu digo isso porque eu sei, ainda que não saiba o que sei. Tu não és mulher, nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti, é quando as palavras te chamam fêmea e as expressões te contornam de mulher que eu tenho de te falar com ternura e amoroso. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não penso nem sinto, mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir e os meus sentimentos góticos de evocar-te. Ah Nossa Senhora do Silêncio! Ó Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem do vazio da minha imperfeição. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua. "


Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'
"Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti. E desse modo imobilizarei a tua alma também.Tu já não me amas. Se consentes em ouvir-me durante uma hora é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar. Ligaste-me e agora desligas-me. Não te censuro, Gherardo. O amor de alguém é sempre um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela ....... só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos."

Marguerite Yourcenar, in 'O TEMPO – esse grande escultor'
"Borboletas são flores que o vento tirou pra dançar..."
Teatro Mágico